
No livro Vida – o filme, Neal Gabler questiona quais as chances de a ficção poder continuar competindo com as histórias da vida real? Se pensarmos na novela da monarquia britânica a resposta é nenhuma. Nesse momento, os tabloides ingleses estão bem abastecidos de drama e especulação desde que o príncipe Harry lançou a autobiografia no dia 10 de janeiro.
Rapidamente esgotada nas livrarias de Londres, Spare é, nas palavras do autor, a resposta a todos os boatos sobre as brigas com o irmão, o uso de drogas na adolescência e tudo que há de novo no front da família real desde que a rainha Elizabeth II faleceu em setembro do ano passado. Para o sensacionalismo britânico foi ótimo, já que no campo da ficção a família real não consegue entreter.
The Crown, vencedora do Globo de Ouro de melhor série dramática em 2021, amarga uma temporada fraca, arrastada e cansativa. Após duas temporadas excelentes com Olivia Colman no papel principal, a série trocou o elenco, não emplacou o enredo permeado pelo caos conjugal, fragilidade mental e confissões públicas de infidelidade e dividiu seis anos (1992 – 1997) em dez episódios.
O resultado foi um produto requentado, já que o período que concentra os problemas entre Charles, Diana e a rainha é tema de dezenas de filmes e documentário, sendo que só no Globoplay você encontra 19 deles. Com a vida real ultrapassando a arte, tudo que o público pensa é em apertar um fast forward até os dias de hoje para ver os desdobramentos do lançamento do livro do príncipe Harry dentro da família.
O livro
Que tal um enredo a lá Hamlet: “Príncipe solitário, obcecado pela mãe morta, vê o pai se apaixonar pela usurpadora do trono”. Na autobiografia Spare, o príncipe Harry diz “não, obrigado” ao rotulo shakesperiano e traz a publico a própria versão de eventos como a morte da mãe, o casamento com Meghan Markle e a renuncia aos títulos reais. Ainda tem o uso de drogas, os anos em que serviu no exército e até mesmo (pasmem) a decisão de manter a barba.
Para divulgação, Harry escolheu a imprensa para falar da imprensa. Nessa espécie de renúncia à fama e à realeza, com todas as suas punitivas invasões de privacidade, Harry só se tornou mais famoso, trocando sua proximidade com o trono pelo primeiro lugar nas cadeiras almofadadas em frente a jornalistas como Anderson Cooper, Oprah Winfrey, Tom Bradby e até o ex jogador de futebol americano Michael Straham.
E se somarmos o lançamento do livro com a dispensável série da Netflix, Harry & Meghan, podemos dizer que Harry se encontra nesse momento ultra exposto, criando uma espécie de paradoxo de atrair atenção sem fim em um esforço para renunciar à fama. Aos 38 anos, o príncipe traz a perspectiva de ser um monarca, mas nunca chegar nem perto do trono, e como sua vida foi cheia de amarras em razão disso.
Um enredo que parece inédito, mas para quem assistiu The Crown certamente vai lembrar de Margareth, a irmã da rainha Elizabeth, e os dilemas enfrentados por ser figurante dentro da realeza. O problema é que dificilmente a série chegará até os dias de hoje se depender do andar da carruagem.
Levemente bocejante
Grã-Bretanha, 1991. No Palácio de Buckingham, a rainha Elizabeth II, agora com 65 anos, está se preparando para o 39º ano como monarca. No número 10 da Downing Street, Margaret Thatcher foi selvagemente deposta um ano antes por membros traiçoeiros de seu próprio partido. O substituto como primeiro-ministro é o ineficaz John Major, que não conseguiu consertar a economia, colocando os britânicos em recessão. E é desta forma que a quinta temporada de The Crown começa.
Os atores Imelda Staunton (Elizabeth), Jonathan Pryce (Philip), Elizabeth Debicki (Diana) e Dominic West (Charles) assumem os papéis antes de Olivia Colman, Tobias Menzies, Emma Corrin e Josh O’conor respectivamente. Por mais que já fosse esperado, a troca de elenco enfraquece a trama, carente de elementos externos. Estamos diante de dez episódios que parecem o programa Casos de Familia, com personagens como o do primeiro-ministro reduzidos a espectadores de um divorcio.
Os acontecimentos variam do incêndio do castelo de Windsor, a entrevista de Diana no programa Panorama da BBC e o annus hirroblis da família real em 1992. Sobram poucos espaços nos episódios para explorar o ar de nobreza e mistério da realeza e toda pessoa em sã consciência perde rapidamente o interesse na monarquia quando percebe o quão normal aquelas pessoas são. Aprendemos isso exatamente assistindo The Crown, no discurso do fictício jornalista do The Guardian, John Armstrong.
Na terceira temporada John critica o documentário intitulado The Royal Family, lançado de fato em 1969 pela BBC, em uma tentativa de humanizar os monarcas que já naquela época não eram unanimidade. O resultado foi um fracasso e um misto de piada e indignação por parte da população. “Como que a realeza pôde achar que pessoas comuns se maravilhassem com o fato de ver que os membros da família real são pessoas normais, sem mistério e cerimonia nem mesmo a monarquia faz sentido”, escreveu Armstrong,
Esse é o elemento que a série perdeu em grande parte nessa última temporada, e sem isso a relevância do programa diminui. Na melhor das hipóteses, o que temos hoje é o retrato de um candidato a rei, louco para assumir o trono, mas que só conseguiria isso mais de 30 anos depois com a morte da mãe. E isso não é spoiler. Aliás essa é a primeira temporada lançada desde que a Rainha Elizabeth II faleceu, e com a morte da personagem na vida real, talvez seja melhor colocar dez ou quinze episódios por temporada ou terminar a série de uma vez. Tem enredo mais legal esperando para ser encenado.