
Frankie Gaye trabalhava em uma rádio do Vietnã nos anos 1960. De lá, escreveu para o irmão expressando insatisfação e nojo da guerra que presenciava. As cartas inspiraram o irmão, Marvin Gaye, a compor e lançar em 1971 Whats Going On, álbum cujos versos cantados dão o tom em boa parte dos 156 minutos de duração de Da 5 Bloods, novo longa de Spike Lee.
Lançado no dia 12 de junho de 2020, o filme da Netflix, que no Brasil ganhou o nome de Destacamento Blood, transpõe o movimento Black Lives Matter até o Vietnã através da história de quatro veteranos. que voltam ao local da guerra 40 anos depois em busca de um tesouro enterrado e os restos mortais do antigo e aclamado líder do grupo. Um roteiro que originalmente estava fadado a ser mais do mesmo, com Oliver Stone escalado como diretor.
O cineasta dos premiados Platoon e Nascido em 4 de Julho desistiu em 2016, e foi só então que Spike Lee tomou as rédeas da produção, e fez as mudanças que tiraram o filme da prateleira das histórias repetidas. Nas mãos do novo diretor, os protagonistas seriam negros e a justificativa para a caça ao tesouro era a maneira como eram tratados nos Estados Unidos. Com isso Da 5 Bloods traz uma visão inédita entre tantas obras sobre a Guerra do Vietnã.
Ineditismo e alguns clichês
Dizem que todas as guerras são travadas duas vezes, a primeira vez no campo de batalha a segunda na memória. Desde o seu término em 1975, a guerra do Vietnã já foi mostrada em obras como a comédia Bom dia Vietnã, passando pela Disney com Operação Dumbo, até os filmes de ação como o Rambo de Stallone e Bradoock de Chuck Norris. Nenhum chegou perto de traduzir a loucura da guerra como Apocalypse Now de Francis Ford Coppola.
Não a toa, Spike Lee faz duas referências claras em Da 5 Bloods a obra prima de Coppola: a cena do barco ao som de The Ryde of Valkyries; e o corpo estendido no chão pronunciando “madness”. Até mesmo a festa do inicio do filme tem o tema de Apocalypse Now. Mas o trunfo do diretor para se diferenciar do outros filmes é focar de forma inédita no fato de que um terço dos combatentes norte-americanos no Vietnã eram negros, embora formassem não mais do que 11% da população dos Estados Unidos.
Apesar do ineditismo, Da 5 Bloods desliza no clichê de desmerecer as consequências da guerra do ponto de vista oriental. Além dos 58.000 norte-americanos e três milhões de vietnamitas mortos, a guerra também foi travada internamente no Laos e no Camboja, deixando mais centenas de milhares civis mortos. Mas tudo bem, entre tantas obras já lançadas sobre o conflito e que nada acrescentam, os problemas do filme de Spike Lee são compensados pelo ativismo que ele levanta.
Os Bloods
Quarenta anos depois, Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Melvin (Isiah Whitlock Jr) e Eddie (Norm Lewis) voltam ao sudoeste da Ásia. Cada um dos quatro lida com o pós guerra de uma forma, mas são unanimes na devoção ao antigo líder Stormin Norman (Chadwick Boseman), morto em combate e descrito por eles como “nosso Malcom e o nosso Martin”.
Norman era um guerrilheiro assumido e um pacifista em potencial. É ele quem impede que uma revolta aconteça depois que os Bloods ouvem pelo rádio a notícia do assassinato de Martin Luther King nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, é do mesmo líder a ideia de enterrar um baú com ouro encontrado. Dessa mistura surge a aura do herói do filme que pula de helicópteros e faz discursos profundos sobre a guerra.
Contudo, o grande personagem de Da 5 Bloods é Paul, cuja sanidade mental é o motor e a moral da história. Ao voltar ao Vietnã, ele é surpreendido pelo filho David (Jonathan Majors), e conforme se embrenha no mato usando um boné vermelho “Make America Great Again” teme cada vez mais encontrar o passado.
O filme vai e volta no tempo, rememorando conflitos da guerra, mas sem efeitos especiais. Os quatro atores atuam ao lado de Boseman, mais novo, dando a sensação de frescor das lembranças. Com a aventura montada, Da 5 Bloods mescla comédia, western e drama, debochando ao longo da trama o apoio de negros ao governo Trump e a gentrificação do Vietnã.
A maneira Spike Lee de fazer cinema
Hoje Spike Lee é uma celebridade, conhecido pela irreverência na beira da quadra do Madison Square Garden nos jogos do New York Knicks. Nos anos 1990 dirigiu e estrelou os comerciais da Nike com Michael Jordan e em 2020 se tornou o primeiro negro presidente do júri do festival de cinema de Cannes. Nascido em Atlanta, mas formado em cinema em Nova York, Spike tem como marca registrada o ativismo social na forma de fazer cinema.
Faça a Coisa Certa de 1989 é um bom exemplo. O filme rendeu ao diretor a primeira indicação ao Oscar e tem no desfecho do personagem Radio Raheem um pressagio sobre brutalidade da policia. Este fato foi relembrado por Spike seis dias depois da morte de George Floyd, com o curta metragem Three Brothers. Da 5 Bloods começa e termina com um discurso de Martin Luther King, que brada que “os negros norte-americanos foram enviados para garantir liberdades no sudeste da Ásia que não haviam encontrado no sudoeste da Geórgia e no leste do Harlem”.
O diretor e o reverendo, embora não contemporâneos, estudaram no mesmo local, a Morehouse College, em Atlanta. Mas nem de perto pode-se dizer que Spike herdou o talento de King para discursar em público. Os exemplos são o agradecimento de quase 18 minutos por um Oscar honorário em 2015, e quatro anos depois em 2019, quando a cena se repetiu ao ganhar na categoria de melhor roteiro adaptado por Infiltrado na Klã.
O prêmio foi entregue pelo colega de Morehouse, Samuel L. Jackson, que não conseguiu conter a empolgação. No limite do tempo, Spike Lee sacou um papel e enumerou abusos cometidos contra a comunidade negra.Todos os presentes, assim como quem conhece o trabalho do diretor, sabe que seu melhor microfone são seus filmes. Neles ele questiona modelos e coloca luz onde não é comum Hollywood colocar. Assim é Da 5 Bloods, filme que no dia seguinte a ganhar o Oscar em 2019, Spike embarcaria para Tailândia para dar inicio as filmagens.
Um comentário em “Da 5 Bloods é um novo olhar com clichês da Guerra do Vietnã”